Presenteando os leitores com uma crônica que acho genial “Se eu
fosse eu” de Clarice Lispector, que foi
publicada, pela primeira vez, em novembro de 1968.
Espero que vocês também gostem desse texto e
pensem “se
você fosse você, como seria e o que faria?”
SE EU FOSSE EU
Clarice Lispector
Quando não sei onde guardei um papel importante e a procura se
revela inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para
guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão
pressionada pela frase “se eu fosse eu”, que a procura do papel se torna
secundária, e começo a pensar. Diria melhor, sentir.
E não me sinto bem. Experimente: se você fosse você, como seria e
o que faria? Logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos
acomodamos acabou de ser levemente locomovida do lugar onde se acomodara. No
entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas,
e mudavam inteiramente de vida. Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos
não me cumprimentariam na rua porque até minha fisionomia teria mudado. Como?
Não sei.
Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar.
Acho, por exemplo, que por certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu
fosse eu daria tudo o que é meu, e confiaria o futuro ao futuro.
“Se eu fosse eu” parece representar o nosso maior perigo de viver,
parece a entrada nova do desconhecimento. No entanto tenho a intuição de que,
passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a
experiência do mundo.
E a nossa dor, aquela que
aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de
alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de
algum modo adivinhando porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de
pudor que se tem diante do que é grande demais.
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